O caminho da transcendência e a busca pela felicidade
Por Vanessa Malagó
A mão desliza sobre o
papel. É precisa. Não hesita. As palavras saem, jorram num fluxo intermitente.
Vêm em atropelo, como que desordenadas, desconexas, mas ocupam seu devido lugar.
Nessa aparente turbulência, seguem um ritmo próprio. Saem melodiosas, estão
vivas, quentes, pulsantes. “Sente-se um estilhaço e não se sabe onde é: é assim
que tem que ser a alegria: não se deve saber por que, deve-se sentir assim:
‘mas que é que eu tenho?’ – e não saber.”Começo com as palavras
de Clarice Lispector, que ainda em minha adolescência, fizeram vibrar em mim algo ainda desconhecido, que não podia nomear.
Anos mais tarde, no meu
contato com o yoga, despontaram palavras como samadhi, transcendência, iluminação. Numa perspectiva concreta e
racional do mundo, aquilo me parecia misterioso, distante. Nos meus primeiros
anos de estudo sobre o yoga, um amigo me perguntou: Pra
que você pratica yoga? Você acredita mesmo na auto-realização? E, ainda mais
enfático, você pratica yoga buscando a iluminação? No momento, eu me lembro de
ter respondido: Não sei. Mas a resposta não importou e sim a pergunta, que
ficou ecoando durante anos e ainda reverbera.
Leio, estudo,
investigo. O que é o samadhi? Qual o
objetivo do yoga?As palavras parecem árduas, difíceis de entender, mas já não
estaria eu atravessando aquela floresta escura por mais de uma vez?
As palavras simples do
prof. Gharote (do Lonavla Yoga Institute, India), em uma de suas aulas em SP, ainda se fazem presentes. “Yoga
é acalmar sua mente”. Mas para que queremos acalmar a mente? “Para
sermos felizes”, ele responde. Todos nós
trazemos uma tendência inata na busca pela felicidade. Todos querem ser
felizes. A felicidade de que fala o yoga
não está fora de você, mas dentro de você.Vai muito além do princípio do
prazer e não depende das coisas externas, é uma disposição da alma, ou como
afirmou o próprio Gharote “é uma condição da mente”.
Samadhi é um dos nomes
para esse estado de aquietação da mente. “...quando não mais consideramos o
Onde, o Quando, o Porquê e o Para Quê das coisas, mas única e exclusivamente o
seu QUÊ; noutros termos, quando o pensamento abstrato, os conceitos da razão
não mais ocupam a consciência, mas, em vez disso, todo o poder do espírito é
devotado à intuição e nos afunda por completo nesta, a consciência inteira
sendo preenchida pela calma contemplação do objeto natural que acabou de se
apresentar, seja uma paisagem, uma árvore, um penhasco, uma construção ou outra
coisa qualquer;quando, a gente se PERDE por completo nesse objeto, isto é,
esquece o próprio indivíduo, o próprio querer, e permanece apenas como o claro
espelho do objeto-então é como se apenas o objeto ali existisse, sem alguém que
o percebesse, e não se pode mais separar quem intui da intuição, ambos se
tornaram unos...” .
Essas poderiam ser
palavras extraídas de qualquer livro sobre o yoga, referindo a samadhi, mas são
palavras de Schopenhauer ao falar sobre a maneira de ver própria do artista. Elas
não diferem muito da visão do professor indiano T.K.Desikachar. Segundo ele, quando
conseguimos ficar tão absortos em algo a ponto de nossa mente se fundir
completamente com aquilo, tornando-se uma coisa só, estamos em estado de
samadhi. Nesse momento experimentamos uma sensação de alegria profunda, e
sabemos com certeza que nos fizemos um com o objeto de nossa meditação.Frações
de segundos em que nos identificamos com o Universo, numa experiência que
transborda o racional e que não podemos reter. Nós mesmos somos a fonte da
nossa alegria.
“Eu sinto uma beleza
quase insuportável e indescritível, como um ar estrelado, como a forma informe,
como o não-ser existindo, como a respiração explêndida de um animal. Enquanto
eu viver, terei de vez em quando a quase-não-sensação do que não se pode
nomear. Entre oculto e quase revelado. É também um desespero faiscante e a dor
se confunde com a beleza e se mistura a uma alegria apocalíptica”. Nas palavras
de Clarice me identifico como esse sentimento macro que transborda nesses
milésimos de segundo que entrecortam nossas vidas, esses pequenos samadhis.
Como fala Joseph
Campbell ,“Os artistas criativos são aqueles
que despertam a humanidade para a lembrança: chamam a nossa mente exterior para
o contato consciente conosco mesmos”.E não é essa a nossa busca com o yoga, encontrar
um estado de paz e quietude que nos coloque em contato com nós mesmos?
Agradeço a Clarice por
desepertar em mim a lembrança, esse contato profundo com a própria essência das
coisas. Somos parte do todo e o todo está em nós.
E agora, como perdurar
esses instantes? E assim como comecei, também termino com as palavras de
Clarice: “Oh, Deus, o que faço desta felicidade ao meu redor que é eterna,
eterna, eterna e que passará daqui a um instante porque o corpo só nos ensina a
ser mortal?”
Deixo a pergunta ali.
Recolhida, mas não esquecida. E mais uma vez, me enveredo pela floresta escura.
Referências:
- Desikachar T.K.V - O
coração do yoga,Ed. Jaboticaba, 2007
- Campbell, Joseph, As
máscaras de Deus:mitologia criativa, Ed. Palas Athena, 2010
- Lispector, Clarice, A
maçã no escuro , 9ª. ed. Francisco Alves Editora, 1995