31 de ago. de 2011

Hatha yoga: trabalhando com o corpo para influenciar a mente

por Vanessa Malagó (artigo publicado na Revista Cadernos de Yoga - Outono de 2007)

Há aproximadamente 400 a.C, Hipócrates, pai da medicina ocidental, já se referia à influência da mente sobre o corpo. Na cultura oriental, há cerca de 5000 anos atrás, os primeiros textos de medicina ayurvédica já tratavam o corpo e mente de forma integrada. O Ocidente partiu da visão integrada de Hipócrates para uma divisão entre corpo e mente, idéia preconizada no século XVII por Descartes, e que se difundiu no pensamento ocidental a partir daí. No final do século XIX e início do século XX esse conceito começou a ser revisto e a associação entre corpo e mente passou novamente a ser considerada no trabalho de alguns estudiosos. Hoje essa idéia vem sendo retomada no Ocidente e é comum admitirmos que problemas como estresse ou depressão afetam diretamente o corpo e a saúde física. Mas, e o contrário? O corpo também não influencia a mente? Se o corpo expressa nossas emoções, não seria possível através do trabalho com o corpo, influenciar estados emocionais e mentais?

O hatha-yoga é uma das escolas do Oriente que vê o corpo e mente de forma integradas. No caminho do auto-conhecimento, o hatha-yoga propõe que se parta daquilo que nos é mais concreto, nosso próprio corpo, para então atuar sobre aspectos mais sutis. No hatha-yoga o corpo é o instrumento para a descoberta de si mesmo. Nesse artigo discutiremos como o trabalho com o corpo, proposto pelo hatha-yoga, atua diretamente no aperfeiçoamento das dimensões emocional e psíquica.

Durante minha adolescência, era comum meus pais me dizerem: “Arruma essa postura, menina!” Mas como me manter ereta? Eu até que tentava, respirava fundo, jogava os ombros pra trás, alongava a coluna, expandindo o peito. Mas quem disse que durava? Num esforço que me parecia sobre-humano, eu podia mantê-la, por vejamos, 5 minutos! E então eu já estava novamente no meu antigo padrão, ombros voltados para dentro, a barriga apontada para frente e o peso do corpo pendendo sobre a parte de trás dos joelhos.
Foi com o hatha-yoga, num processo lento e progressivo, que comecei a travar contato com novos padrões e referências em meu corpo. Quando comecei a praticar, meu conhecimento sobre o yoga se restringia às posturas feitas em sala de aula e exercícios respiratórios. Procurando saber mais sobre o assunto, recorri aos livros. Em diversos textos sobre o yoga era comum ouvir sobre a união entre corpo e mente. Mas o que isso significava?

Admitimos com naturalidade que a mente afeta diretamente nossa saúde física. Quantas vezes não escutamos: “fulano passou tanto stress que teve uma úlcera”. Aí parecia estar a relação entre corpo e mente. Mas eu também já havia me deparado em outras leituras com a idéia de que o corpo espelha nossas emoções e sentimentos e a linguagem do cotidiano, inclusive, nos mostra continuamente isso: “Ele é um sujeito casca-grossa”.... “Ela tem os pés no chão”. Usamos expressões como essas no nosso dia-a-dia, e muitas vezes, nem nos damos conta dessa relação. Não poderíamos também interferir na mente pelo corpo? Não seria essa a proposta dos asanas e pranayamas?

O trabalho com o corpo nos faz despertar para experiências mais sutis e está diretamente ligado à emoção. Como afirma Rojo (2003):

“É fácil perceber no corpo as modificações provocadas por uma alteração emocional. Alguém tenso logo apresenta ombros suspensos e rígidos com alteração no tônus muscular. Alguém deprimido pode apresentar uma postura de flexão ou inclinação da cabeça para frente. A idéia do yoga é seguir o caminho do físico para o mental, interferir onde as emoções interferem;ou seja, primeiramente no tônus muscular, na postura, e posteriormente na respiração.” (ROJO, 2003 pg.61)

Através dos asanas aumentamos o calor interno, que não apenas ajuda a eliminar as toxinas do organismo, mas também traz mais flexibilidade e movimento para o corpo. Através dessa liberdade de movimento, somos capazes de abrir partes do corpo que antes se encontravam bloqueadas. Swami Saraswati (2002) comenta sobre isso:

“A prática de asanas integra e harmoniza corpo e mente. Tanto o corpo como a mente permitem o desenvolvimento de tensões e nós.[...] O objetivo do asana é aliviar esses nós. Os asanas aliviam as tensões mentais , lidando com elas no nível físico, atuando somática e psicologicamente através do corpo e da mente. Por exemplo, tensões emocionais podem bloquear o funcionamento normal dos pulmões, do diafragma e prejudicar o processo respiratório.” (SARASWATI, 2002 pg. 11)
A partir da retomada no Ocidente do pensamento que associa corpo e mente, essa idéia da relação entre tensão muscular e bloqueio emocional já presente no hatha-yoga começa a surgir em estudos mais modernos da psicoterapia corporal.

Reich, psicoterapeuta que foi aluno e colaborador de Freud e mais tarde rompeu com o movimento psicanalítico criando as bases para a psicologia corporal, desenvolveu o conceito do couraça muscular, que parece diretamente ligado a essa idéia de liberar partes do corpo bloqueadas. As couraças são espécies de armaduras emocionais que funcionam como mecanismos de defesa para o indivíduo. Reich observou em seus pacientes que, bloqueios emocionais estavam diretamente ligados a tensões musculares no corpo, que limitavam a respiração e o movimento. “A análise do nível somático havia revelado que os pacientes prendiam sua respiração e chupavam a barriga a fim de suprimir ansiedade e outras sensações... Em situações que são vividas como amedrontadoras ou dolorosas, prende-se a respiração, contrai-se o diafragma e enrijece-se os músculos abdominais. A descarga da tensão resulta em suspiro. Se este padrão se torna crônico, o peito está sempre numa postura de inspiração do ar, a respiração é baixa e o estômago duro.” (LOWEN, 1977, pg. 31).

A Análise Bioenergética, baseada nos estudos do médico americano Alexander Lowen é outra linha da moderna psicoterapia corporal que procura relacionar corpo e mente, fazendo com que o paciente trave contato com suas tensões, a fim de que possa percebê-las e se tornar consciente do seu significado. Que ações estão sendo evitadas inconscientemente a partir dessa tensão? Como ela age para limitar sentimentos e sensações? Que efeito causa no comportamento e nas atitudes?

Ida Rolf, bioquímica que desenvolveu um processo de educação corporal na década de 40, conhecido hoje como Rolfing, partiu dessa mesma idéia no desenvolvimento de seu trabalho (1999, pg. 23): “O corpo do homem não é apenas um instrumento de sua auto-expressão, é ele próprio.” Uma pessoa em dificuldades modifica inconscientemente seu corpo, solidificando sua atitude mental no “concreto biológico”. Se alguma coisa que lhe incomoda espiritualmente, mentalmente ou emocionalmente isso irá evidenciar-se em seu corpo. “

Outra abordagem interessante sobre essa via de mão dupla entre corpo e mente é apresentada nas idéias de Stanley Keleman (1992) , que desenvolveu a psicologia formativa. Segundo ele, o organismo humano é como uma bomba pulsátil, composto de tubos e camadas, que se expandem e se contraem, como resposta as diversas situações que enfrentamos em nosso dia-a-dia. Se choramos , se rimos, se sentimos dor ou prazer, isso é sentido em nosso corpo. As emoções acontecem através do corpo e mudam nossa forma, muitas vezes apenas temporariamente. Entretanto, em algumas situações a reação pode persistir, passando a fazer parte da nossa estrutura. Um estresse emocional contínuo pode fazer com que esses tubos e camadas se tornem rígidos e alongados, inchados, densos e comprimidos ou frágeis e em colapso. Quando um estresse ou agressão contínua fixa o corpo numa determinada estrutura, o organismo perde sua plena capacidade emocional.

Lowen (1983) aborda essa mesma questão no seguinte comentário:

“A pessoa que pensa que se conhece mas está sem contato com a qualidade e o significado de suas reações físicas está funcionando sob uma ilusão. Confunde as intenções com as ações. Em seu coração a pessoa quer sair em busca, mas esse impulso não pode fluir livremente por causa de sua armadura muscular”. (LOWEN, 1983, pg. 186)

Ainda que haja uma intenção consciente por parte do indivíduo da necessidade de uma mudança, essa não pode acontecer, porque o corpo não possibilita a mudança. É necessário romper esse bloqueio, essa couraça muscular, para que a mudança se concretize. Para mudar algum tipo de comportamento, não basta portanto, o insight psicológico. É preciso mudar também o corpo, saindo de seus automatismos. Keleman afirma que se não entendermos nosso comportamento somático e continuamos a nos identificar com velhos padrões não há como mudar nossa história.
No hatha-yoga procuramos justamente sair desses automatismos. Através dos asanas desprogramamos as memórias de nosso corpo físico, organizamos e desorganizamos padrões. Vejo em minhas aulas que a prática de retroflexões muitas vezes é encarada com resistência pelos alunos. Em nosso dia-a-dia, diversas atividades que desempenhamos nos levam a nos curvar para frente. A ação de curvar para trás, exigida pelas retroflexões é uma mudança de paradigma que explica essa resistência. Por outro lado, a resistência pode não ser simplesmente física, mas também psicológica, pelo receio de que ao abrir o peito se desfaça de um padrão postural que atua como forma do indivíduo proteger-se do mundo. O mesmo pode ocorrer com posturas invertidas, em que a dificuldade pode não estar ligada a condição física, mas no medo de assumir uma postura que é diferente daquela que se está habituado a fazer. Ficar “de ponta cabeça” implica em ver o mundo com outros olhos.
Nos pranayamas, aprendemos a variar a duração da inspiração e da expiração, assim como a reter a respiração ou manter os pulmões completamente vazios. Essas práticas fazem da respiração uma ação consciente e controlada. O hatha-yoga propõe que não se respire apenas porque você precisa respirar, mas que esse se torne um ato voluntário. Dessa forma a respiração não servirá somente para a manutenção da vida, mas também para influenciar estados mentais e emocionais. Segundo a Bioenergética, as couraças musculares e as estruturas corporais são construídas a partir da história emocional de cada indivíduo. A respiração vai sendo reduzida à medida que o encouraçamento vai evoluindo. Lowen descreve em diversos momentos como a respiração vai sendo suprimida para reprimir sensações e emoções na tentativa de não sentir ou sentir cada vez menos.
À medida que trabalhamos o corpo no hatha-yoga, é comum que questões emocionais venham à tona. Isso está diretamente relacionado à quebra de determinados padrões posturais e couraças. A revista Yoga Journal publicou em Abril de 2004 um artigo abordando essa situação e entrevistou diversos professores de yoga. Os asanas não são prescritos para questões emocionais como muitas vezes são para aspectos físicos, entretanto, a maioria dos professores entrevistados concorda que algumas posturas parecem iniciar mais do que outras respostas emocionais. Posturas que trabalham aberturas de peito como as retroflexões e torções foram algumas das posturas mencionadas.Por que isso parece ocorrer durante a prática dessas posturas? As retroflexões são posturas que dão ênfase a abertura dos músculos da parte frontal do corpo, já as torções, estimulam e tonificam os órgãos região abdominal. Segundo Dychtwald (1984), no interior da região abdominal estão muitos de nossos órgãos vitais, nossas vísceras e nossos sentimentos. É daí que brotam nossas emoções, fluindo para baixo, inundando a pelve e pernas, e para o alto, atingindo o peito, onde os sentimentos são ampliados e traduzidos. O peito de uma pessoa tende a assumir uma forma que reflete seu modo de lidar com os elementos de sua vida.

Sobre isso, Dychtwald (1984) complementa:

Contrariamente, o modo como o indivíduo relaciona-se com as dimensões passionais, expressivas e interpessoais de si mesmo será fortemente influenciado pela natureza e pela estrutura desta região de seu corpomente.” (DYCHTWALD, 1984, pg. 145)

Voltando há alguns atrás, quando para mim abrir o peito e manter-me ereta, aos constantes avisos dos meus pais, me parecia extremamente penoso, percebo que, ainda que ocorra de modo lento e gradual, assimilar uma nova forma envolve uma experiência de certa maneira dolorosa. À medida que se vai incorporando um novo padrão postural, a antiga referência começa aos poucos a parecer inadequada e pouco funcional. Como me portar? Abro ou fecho o peito? Expando-me ou me contraio? A sensação inicial é a de não encontrar uma forma adequada, como se a nova forma ainda me fosse um pouco estranha e a antiga, então já não me servisse. Aos poucos vou assumindo um novo corpo, mas então percebo que não é só isso. Eu por inteira, já não sou mais a mesma.

Kuvalayananda (1963) afirma que os exercícios de hatha-yoga podem ajudar a corrigir disfunções metabólicas e problemas físicos, mas seu real valor está no aspecto psicossomático. Ele comenta que ao realizar um asana, a sensação que se tem muitas vezes é a de uma ‘dor agradável’. Um comentário bastante próximo desse é feito por Lowen (1983) na observação dos exercícios de bioenergética ministrados a seus pacientes e seus efeitos. Ele diz que na terapia, trabalha-se diretamente com o corpo, com o intuito de liberar conflitos profundos que giram em torno da pessoa e seus sentimentos. Essa liberação não poderá ser obtida sem dor, entretanto vem com ela uma sensação de alívio, à medida que o paciente compreende que é possível uma nova maneira de viver, apesar das suas dificuldades. Lowen (1983, pg. 83) comenta: “Interpreto esse sofrimento como ‘dores do crescimento’- isto é, resulta de sentimentos (ou energia) forçando sua passagem através de músculos espásticos rígidos.”

Rolf (1999) também faz uma observação interessante sobre isso:

“Não há experiência dolorosa além da intenção determinante de afastar-se da experiência. O desejo da autopreservação, a inércia, a resistência à mudança são compreensíveis e previsíveis. A experiência da mudança para o homem comum manifesta-se freqüentemente como ‘dor’.” (ROLF, 1999, pg. 253)

A dor agradável a que se refere Kuvalayananda, assim como descrita por Lowen e Rolf é uma dor transitória que leva depois a uma sensação de bem-estar, e que pode não necessariamente ser uma dor física, mas uma dor associada à quebra de antigos padrões e resistências.

No hatha-yoga trabalhamos a flexibilidade do corpo, criando condições para que este assuma novas formas e novas estruturações. A flexibilidade do corpo vai além do aspecto físico, se refletindo na maneira com que cada um constrói sua própria história pessoal. De acordo com Keleman, um organismo amadurecido é aquele capaz de englobar múltiplos jogos de força (contração e expansão). A plasticidade nos dá condições de nos construirmos continuamente e a possibilidade de transformação, aumentando nossa capacidade de conexão com o mundo a nossa volta.
O trabalho com o hatha-yoga utiliza o asana como instrumento para se perceber a forma. O quão flexível é meu corpo? Em que posturas tenho facilidade, em quais sinto dificuldade? Como fica minha respiração durante a execução das posturas? A quebra de paradigmas através de posturas como as inversões ou qualquer outra postura que envolva a construção de uma forma distinta daquela que é padrão para o indivíduo, possibilita o contato com o novo. Utilizar novas formas é permitir-se novas escolhas e possibilitar que se assuma novas posturas emocionais diante da vida.

A conexão mente e corpo começou a parecer mais clara. Como experenciar as coisas da vida, senão em meu próprio corpo? Como praticar o amor, se não me entrego, se meu coração se mantém intocável e escondido na armadura das costas e na curvatura dos ombros? Como praticar o contentamento, se a respiração antecipa os instantes e não se dá tempo para que possam ser desfrutados? Como ter determinação e perseverança se as pernas não se sustentam?

Nesse caminho do hatha-yoga, descobri o corpo como ferramenta para o auto-conhecimento e evolução pessoal. À medida que aprendemos a assumir novas formas, mudamos não apenas essa camada visível e concreta de nós mesmos (o corpo), mas a maneira como vemos e interagirmos com o mundo. Nos abrimos para novas escolhas e novas formas de experienciar o mundo a nossa volta.

Citando as palavras de Moffitt “Se você vê a mente e o corpo como uma única coisa, você pode mudar o que acontece em sua mente, alterando o que acontece em seu corpo”


Referências Bibliográficas:

GULMINI, Lilian; ROJO, Marcos ...et al. Estudos sobre o Yoga. São Paulo, CEPEUSP, 2003.
DYCHTWALD, Ken. Corpomente, São Paulo, Summus Editorial, 1984
KELEMAN, Stanley. Anatomia Emocional, São Paulo, Summus Editorial,1992
KELEMAN, Stanley. Corporificando a Experiência, São Paulo, Summus Editorial, 1995
KUVALAYANANDA, Swami ; VINEKAR, Dr. S.L. Yogic Therapy Its Basic Principles and Methods, Manager Govt. of India Press Nasik, 1963
LOWEN, Alexander. O corpo em depressão: as bases biológicas da fé e da realidade, São Paulo, Summus Editorial, 1983
LOWEN, Alexander. O corpo em terapia: a abordagem bioenergética. São Paulo, Summus Editorial, 1977
MOFFITT, Phillip. This which we call body, Yoga Journal, Berkeley, January 2000 - disponível também em: http://www.yogajournal.com/practice/207_1.cfm (02/01/2007)
RASKIN, Donna. Emotions in Motion,Yoga Journal, Berkeley, issue180 pg.72. April 2004
ROLF, Ida – Rolfing: A Integração das estruturas humanas, São Paulo, Martins Fontes, 1999
SARASWATI, Swami Satyananda. Asana Pranayama Mudra Bandha, Bihar, Yoga Publications Trust, 2002